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O malabarismo para viver com os salários do magistério

06/12/2018 |  Folha de S. Paulo

"Minha filha, aqui a gente dá uns pulos.” Assim, Cícero Ferreira de Lima assume seu malabarismo para fechar as contas do mês sendo professor de Educação Física na EE Alberto Caldeira, em Farias, distrito de Guanhães (MG).

Quando não está dando aula, ele assenta pisos de cerâmica, chapisca paredes e dá o acabamento com reboco em casas da cidade. Apareceu um problema com a bomba hidráulica ou o chuveiro encrencou? Lá está Cícero. O professor também faz corridas com seu Corsa até Guanhães, a 45 quilômetros por estrada de terra, levando e trazendo seus conterrâneos. Cobra 100 reais pelo trajeto total. “Falar pra você que compensa esse valor, compensa não”, diz. “Aqui a gasolina é cara, a estrada de chão não presta, faço mais para ajudar quem precisa.” 

O guanhanense fala como se necessitado não fosse. Mas, aos 40 anos, tem apenas um cargo como contratado. São 17 aulas por semana, pelas quais ganha 1,6 mil reais. Professor há quase uma década, ele afirma que, financeiramente, seria melhor se concentrar na função de pedreiro, ofício que aprendeu do pai. “Mas eu adoro estar com os meninos na escola, é a melhor coisa que existe”, afirma.

A mulher, Danúbia da Costa Teixeira, 34 anos, leciona na mesma instituição, mas como concursada, e nos períodos da manhã e da noite. Suas aulas de português lhe rendem 2 mil reais, que são pagos em três parcelas ao longo do mês — prática exercida por Minas Gerais desde 2016 para remunerar os servidores públicos.

Acontece que a soma salarial dos dois professores não garante o sustento do casal nem dos filhos, de 11 e 4 anos. Então, quando aparece, Danúbia faz palestra para o Sebrae sobre a importância da argumentação para aumentar as vendas, pelas quais recebe em média 150 reais. Também corrige redações do Enem e presta assessoria em trabalhos de conclusão de curso.

De olho numa melhor formação, ela faz doutorado em Linguística Teórico-Descritiva na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Belo Horizonte. Como o governo cortou as bolsas da Capes, Danúbia vende bananas verdes fritas na faculdade para custear a viagem e aceita a guarida dos professores para dormir na casa deles, na capital. “Quase todo colega meu da escola pública faz alguma coisa por fora, vende cosméticos, lingerie, dá aula particular de violão ou de pintura”, lembra a mineira.

A jornada do casal reflete o jeito que os educadores brasileiros encontram para sobreviver aos contratos precários e à baixa remuneração da profissão. Para José Marcelino de Rezende Pinto, professor da Universidade de São Paulo (USP) com experiência em política e gestão educacional, o problema remonta, na verdade, ao século 19.

De fato, em 1891, o médico, jornalista e historiador José Ricardo Pires de Almeida já denunciava “a função mal remunerada que não encontra na opinião pública a consideração a que tem direito muito mais que as outras”. O professor, nas palavras de Almeida, substituía em certa medida o pai e a mãe de família, inaptos para cumprir completamente seu dever social. Deveria ganhar mais, portanto.

A questão, porém, não se resolveu. “Vivemos uma crise crônica de remuneração”, afirma Rezende. Àqueles que desejam puxar o debate para mais perto, o sociólogo Ricardo Antunes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aponta o período da ditadura militar como um divisor de águas. “A ditadura, no seu conjunto, tinha a ideia de incentivar as escolas privadas, o que debilitou as chamadas escolas de aplicação, que ensaiavam um projeto público mais qualitativo”, afirma. Segundo Antunes, os governos que se sucederam, já no período democrático, não enfatizaram uma política de recuperação do que se perdeu em termos de excelência.

Assentando o Piso

Se há conquistas a apontar é a Lei nº 11.738, de 2008, que instituiu o Piso Salarial Profissional Nacional e estipulou um valor abaixo do qual nenhum professor deve receber. Em 2009, ele era de 950 reais; hoje, para uma jornada de 40 horas por semana, perfaz brutos 2.455 reais.

“Mas atualmente apenas 66% dos municípios cumprem o piso e somente 14 estados remuneram o mínimo previsto em lei”, diz Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

Ela explica que muitas cidades de pequeno porte têm dificuldade de arrecadação, um dos motivos para não pagar o valor determinado para o início da carreira. Já nos grandes centros urbanos o desafio é outro: em geral, cumpre-se o piso, mas ele está muito aquém de atender a condições de vida diante dos custos elevados com moradia, transporte, alimentação e acesso à cultura. Anna frisa que é preciso garantir a valorização gradual dos salários e a incorporação das gratificações, que, segundo ela, são muitas vezes utilizadas para não aumentar o salário-base.

O professor de Matemática e Física Alexandre Gonçalo Santana, 47 anos, mora no Rio de Janeiro, segunda maior cidade do país e capital de um estado cuja calamidade financeira está diretamente relacionada com a precariedade do professorado. Dono de apenas uma matrícula, Santana conseguia se manter por meio das horas extras que fazia. “Eu fazia dobra nas escolas, tinha isso como um salário que compreendia todos os meus custos, até alguns passeios”, lembra. Mas, há um ano, ele perdeu essas horas extras —que não são incorporadas ao salário na aposentadoria— e não conseguiu mais pagar suas despesas com a remuneração de docente no CIEP 230 Manoel Malaquias Gurgel da Silva, em Nilópolis.

Seus olhos se voltaram para o Uber. Alexandre vendeu o carro e comprou outro adaptado para gás, combustível mais econômico. Hoje ele roda no contraturno das três aulas semanais e não descansa nos fins de semana. Acrescentou cerca de 2 mil reais das corridas ao salário de 4 mil reais, além de 600 reais por mês com as três aulas por semana que dá a presos do Complexo de Bangu.

Estudo do Todos pela Educação mostra que 29% dos 2 mil entrevistados têm ocupações extras para complementar a renda. Desses, 9% focam em atividades educacionais, como Danúbia, 5% se voltam ao comércio, como os colegas de Danúbia, e 3% prestam serviços, como Cícero e Alexandre.

A baixa remuneração docente impacta também na escolha que os jovens mais bem preparados fazem para entrar na carreira. “A atratividade nunca foi tão baixa se comparada a outras profissões”, diz Andreza Barbosa, professora da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Ela realizou em 2018 uma pesquisa com professores da rede pública que atuam na região de Piracicaba, no interior paulista, onde o Índice de Desenvolvimento Humano é alto. Dos 464 professores entrevistados, 15% possuíam outra fonte de renda.

“Os estudantes têm optado por carreiras que gozam de maior prestígio e valorização social e financeira”, afirma. Andreza reconhece a heterogeneidade dessa situação. Ela lembra que há estados em que o problema é menor, e por vezes dentro do próprio estado há discrepâncias consideráveis entre os municípios.

O professor de Educação Infantil Evandro Tortora, 30 anos, não demorou a perceber esse cenário. Em 2014, na sua cidade natal de Pederneiras (SP), ele ganhava 1,5 mil reais por 32 horas semanais. Cerca de 230 quilômetros adiante, em Campinas, passou a receber pela mesma jornada 4.900 reais (somado o vale alimentação) depois que passou a atuar no CEI Dr. Claudio de Souza Novaes.

“Aqui a gente não precisa dobrar período e somos remunerados para fazer cursos de formação”, diz, já instalado em um apartamento alugado, onde mora sozinho. O salário lhe permite bancar viagens à Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru, onde faz doutorado.

Equiparação de salários

O Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (PNE) 2018, elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), mostra uma queda na diferença no salário de professor e de outros profissionais de mesma escolaridade. De 65% em 2012 foi para 75% em 2017. Ou seja: era 35% menor, e agora seria 25% inferior. “Isso não significa que houve melhora efetiva na remuneração docente, mas, sim, que a queda nas demais profissões foi maior nesse meio tempo”, afirma Rezende.

O PNE estabelece na meta 17 a necessidade de equiparar a remuneração docente com a de outros profissionais dos quais também se exige formação em nível superior. A meta tem uma data que deveria ser atingida até 2020, ao final do sexto ano de vigência do plano. Para chegar a esse patamar de equiparação, especialistas em educação pedem quase em uníssono que se revogue a PEC 241.

Aprovada em 2016, ela estabelece um limite do governo federal para gastos primários (aqueles com saúde, educação, assistência social, cultura etc.). A fórmula passa a valer a partir de 2018 e vai até 2026.

Quem não respeitar o teto ficará impedido de, no ano seguinte, dar aumento salarial, contratar pessoal e estabelecer novas despesas. “Essa PEC impossibilita que os recursos e os salários sejam de maior monta e que ocorra uma efetiva reestruturação do setor público”, diz o sociólogo Ricardo Antunes, da Unicamp. Para ele, seria preciso cortar em áreas “irrelevantes” do serviço público e reorganizar completamente esse orçamento, sob risco de daqui a uma década a situação da escola pública estar ainda mais precarizada.

Fora do alcance da PEC 241, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) é apontado como um ganho, que dirime as desigualdades. O fundo reúne a arrecadação de impostos municipais e estaduais —mais uma complementação da União— e distribui para os estados mais pobres. O modelo vence em 2020 e dois projetos correm no Congresso com sugestões de mudanças, um deles propondo que 70% da soma seja usada para pagar profissionais da Educação — hoje, 60% vai para salários apenas de professores.

Para as mulheres, menos ainda

A dedicação ao magistério é predominantemente feminina —80% dos profissionais são mulheres—, e esse é outro ponto a ser levado em conta quando se fala de remuneração. Embora no sistema público haja uma equiparação salarial entre os dois sexos, mais mulheres atuam na educação infantil e nos anos iniciais do Fundamental, etapas que pior remuneram.

“As sociedades machistas, ao ver como suplementar o papel das mulheres, fortalecem a redução e o achatamento salarial, e isso é evidente na rede de ensino”, afirma Antunes. Para ele, o professor vem sendo destruído naquele que era seu atributo maior: a qualidade intelectual e a formação. “Quando a criança em condição de precariedade encontra um professor mal preparado e desmotivado, trabalhando em ambientes depauperados, isso tem consequências profundas, entre elas a incapacidade de criar um ensino livre, universal, laico e humanista”, afirma.

Mesmo com dupla, tripla, às vezes quádrupla jornada, Danúbia da Costa Teixeira não se vê fora da sala de aula, assim como seus dois irmãos, também professores. Isso não a impede de voltar à carga contra a situação adversa do magistério no país.

Título original: De pedreiro a Uber: o malabarismo para viver com os salários do magistério

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